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segunda-feira, 31 de agosto de 2009

O Sagrado e o Profano

Texto encaminhado para postagem no Blog pelo autor, o Irmão Valter Martins Toledo, ex-deputado federal na SAFL-GOB, recentemente placetado da Loja "Os Templários" nº 2819, do Oriente do Paraná. Na vida profana, o Irmão Valter Toledo é magistrado aposentado, jornalista pela UFPR - DRT/PR - 344, escritor e atualmente está atuando no Grupo de Conciliação do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, como Conciliador de 2ª Instância - Voluntário. 

O Sagrado e o Profano

O sagrado e o profano é um tema que não interessa somente ao historiador das religiões, mas também ao etnólogo, ao sociólogo, ao historiador, ao psicólogo, ao filósofo, enfim, a todo investigador desejoso de conhecer as dimensões possíveis da existência humana. Isto porque o sagrado e o profano constituem duas modalidades de ser no mundo, duas situações existenciais assumidas pelo homem ao longo da sua história. Conhecer as situações assumidas pelo homem religioso, compreender o seu universo espiritual é fazer avançar o conhecimento geral do homem. É certo que muitas situações vividas pelo homem religioso das sociedades primitivas e das civilizações arcaicas já foram ultrapassadas pela História, porém, deixaram traços que subsistem até hoje, e fazem parte da História contemporânea.

O Sagrado

O sagrado manifesta-se sempre como uma realidade de ordem inteiramente diferente das realidades naturais. É tudo o que ultrapassa a experiência natural do homem e se manifesta como qualquer coisa absolutamente diferente do profano. É tudo aquilo de que o homem toma conhecimento mediante hierofania (manifestação do sagrado). O sagrado está saturado de ser, potência sagrada que ao mesmo tempo quer dizer realidade, perenidade e eficácia. No fim das contas, o sagrado equivale ao poder, à realidade por excelência.

A manifestação do sagrado funda ontologicamente o mundo, demarca porções de espaços qualitativamente diferentes. “Não te aproximes daqui, descalça as sandálias, porque o lugar onde te encontras é uma terra sagrada” (Êxodo, 3:5). O mundo onde se vive deve ser um mundo real, que é necessário fundar, criar. Nenhum mundo pode nascer no caos, porque o caos constitui um espaço profano. Antes de ser habitado, o caos precisa ser organizado, precisa ser sacralizado. A manifestação do sagrado transforma o caos em cosmos.

O Profano

O homem religioso crê sempre que existe uma realidade absoluta, o sagrado, que transcende este mundo, mas que se manifesta neste mundo e, por este fato o santifica e o torna real. Além disso, crê que a vida tem uma origem sagrada e que a existência humana atualiza todas as suas potencialidades na medida em que é religiosa. Por isto, ele se esforça para se manter o maior tempo possível num universo sagrado.

Já o homem a-religioso recusa a transcendência, aceita a relatividade do que ele considera a realidade, e chega a duvidar d sentido da existência. O homem a-religioso considera-se a si mesmo o único sujeito agente da História e não aceita nenhum modelo de humanidade fora da condição humana. Ele faz-se a si próprio e só consegue faze-lo na medida em que dessacraliza o mundo e a si próprio. O sagrado é um obstáculo à sua liberdade. Ele só se tornará ele próprio quando estiver radicalmente desmitificado. Só será verdadeiramente livre após matar o último deus.

Sacralização do mundo

A religiosidade do ser humano se estende por toda a história da humanidade.

É possível que o homem pré-histórico sacralizasse a caverna em que dormia.

Quando um território desconhecido, estrangeiro, é ocupado, é transformado simbolicamente em cosmos, mediante o ritual da cosmogonia. Dele se toma posse, consagrando-o pela Cruz. 

Descoberta do Brasil: a terra descoberta era profana, mas foi sacralizada ao se erigir a cruz, e rezar a primeira missa; foi então “batizada” como Terra de Santa Cruz.

O cosmos que o homem habita (corpo, casa, território tribal) este mundo, na sua totalidade, comunica-se pelo alto com um outro nível que lhe é transcendente.

O aniquilamento da “casa”, do cosmos pessoal que se escolheu habitar, traduz a ultrapassagem da condição humana. 

Toda a forma de cosmos (universo, templo, casa, corpo humano) é provida de uma abertura superior, a qual possibilita a passagem de um modo de ser a outro. Essa passagem está predestinada para toda a existência cósmica, o homem passa da pré-vida a vida e finalmente à morte, da mesma forma que o sol passa das trevas à luz. Assim como o sol passa das trevas à luz todos os dias, também a existência humana chega à plenitude por uma série de ritos de passagem, de iniciações sucessivas. 

...o homem deve nascer uma segunda vez, espiritualmente, tornando-se homem completo quando passa de um estado imperfeito, embrionário, a um estado perfeito, de adulto.

...lua como arquétipo do devir cósmico 

...vegetação como símbolo do renovo universal 

A iniciação, a morte, o êxtase místico, o conhecimento absoluto, a fé, no judeu-cristianismo equivalem à passagem de um modo de ser a outro, operando uma verdadeira mutação ontológica. 

E essa passagem tem sempre uma porta estreita ou uma ponte perigosa. 

Na mitologia iraniana, a ponte Cinvat é utilizada pelos mortos na sua viagem: tem largura de nove comprimentos de lança para os justos, mas para os ímpios torna-se estreita como a lâmina de uma navalha. A visão de São Paulo mostra uma ponte estreita como um cabelo que liga o mundo ao Paraíso. A mesma imagem se encontra entre os escritores e místicos árabes, para os quais a ponte é mais estreita do que um cabelo, e liga a Terra às esferas astrais e ao paraíso. As lendas medievais falam de uma ponte escondida sob a água e de uma ponte-sabre, sobre a qual o herói Lançarote deve passar com os pés e as mãos nuas. Esta ponte é mais cortante do que uma foice, e a passagem se faz com sofrimento e agonia. Na tradição finlandesa uma ponte coberta de agulhas, de pregos, de lâminas de navalha atravessa o inferno: os mortos utilizam-na na sua viagem para o outro mundo. Mateus afirma que “estreita é a porta e apertado o caminho que conduz à vida, e há poucos que o encontram”. 

Tais “pontes” difíceis simbolizam a dificuldade do conhecimento metafísico, e, no cristianismo, da fé. 

Mostram que a existência cotidiana e o pequeno mundo que ela implica são suscetíveis de ser valorizados no plano religioso e metafísico. Todo pequeno ato pode significar um ato espiritual ou metafísico. Qualquer caminho pode significar o caminho da vida, toda marcha pode ser uma peregrinação par ao centro do mundo. 

Raramente se encontra uma experiência drasticamente a-religiosa da vida total em estado puro, mesmo nas sociedades mais secularizadas. Pode ser que num futuro mais ou menos longínquo tal experiência se torne mais freqüente. O que se encontra no mundo profano é uma secularização radical do nascimento, do casamento e da morte, mas apesar de tudo, subsistem vagas recordações e nostalgias de comportamentos religiosos abolidos.

A iniciação sobrevive no mundo moderno, porém fortemente dessacralizada.

O iniciado não é somente um recém-nascido ou um ressuscitado. Ele é um homem que sabe, que conhece os mistérios, que teve revelações de ordem metafísica. Aprendeu os segredos sagrados, os mitos que dizem respeito aos Deus e à origem do mundo, os verdadeiros nomes dos deuses, o papel e a origem dos instrumentos rituais utilizados durante as cerimônias de iniciação. A iniciação equivale à maturação espiritual.

Em certos povos bantu, o segundo nascimento é marcado por cerimônia conhecida como nascer de novo. O pai sacrifica um carneiro e a criança é envolta na membrana do estômago e na pele desse animal, mas antes, precisa subir na cama e chorar como um recém-nascido. Os mortos são enterrados em posição fetal, envoltos na pele dos carneiros.

Nos contextos iniciáticos, a morte significa a ultrapassagem da condição profana, não santificada, a condição do homem natural, ignorante da religiosidade, cego para o espírito.

O segundo nascimento é um tema imemorial, que comporta elementos diferentes de uma religião para outra, porém, todas têm algo em comum: o acesso à vida espiritual comporta sempre a morte para a condição profana, seguida de um novo nascimento.

A dessacralização da natureza

Para o homem religioso a natureza nunca é exclusivamente natural, tem sempre um significado espiritual, místico, lembra a Mãe, a Vida, o eterno recomeço. A sociedade moderna, porém, dessacralizou a natureza, mantendo, porém, muitos dos significados religiosos. Um bom exemplo vem da China, que, desde séculos imemoriais, cultivava jardins com um significado místico. Nesses jardins havia, invariavelmente, os mesmos elementos: lagos, rochedos, árvores, flores, modelos de casas, pagodes, pontes e figuras humanas, cada qual com seu significado próprio. Tinham como objetivo possibilitar às pessoas que participassem de suas forças místicas, restabelecendo, pela meditação, a harmonia com o mundo. Era um sítio perfeito, lugar santo, Desde o século XVII, porém, esses jardins vêm sendo dessacralizados, passando a representar tão somente um item de decoração das casas, local de contemplação meramente estética, objetos de arte.

Ainda hoje os jardins chineses conservam essa característica.

O Profano hoje

Mesmo o homem a-religioso tem comportamentos que pertencem à esfera da religiosidade. Para dar alguns poucos exemplos: o marxismo prolonga o mito do redentor do justo, o eleito, ungido, inocente, representado pelo proletariado, cujo sofrimento mudará o estatuto ontológico do mundo, a luta entre o bem e o mal, que se pode aproximar facilmente do conflito apocalíptico entre o Cristo e o Anticristo. No nudismo e em movimentos a favor da liberdade sexual absoluta, pode-se identificar resquícios da nostalgia do paraíso, o desejo de reintegrar o estado edênico do antes da queda, quando o pecado não existia. Na psicanálise, que é uma técnica especificamente moderna, observa-se o padrão iniciático: o paciente é convidado a descer ao mais profundo de si mesmo, a afrontar o seu próprio inconsciente, a verdadeiramente “descer aos infernos”, para então nascer de novo e ascender a uma existência responsável e aberta. O inconsciente fornece-lhe soluções para as dificuldades de sua própria existência, e, neste sentido, desempenha o papel da religião, com todos os seus mitos e símbolos.

Os ritos de passagem estão presentes na vida do homem religioso, mas também na do a-religioso, embora este não o admita. Cada rito de passagem equivale a uma iniciação, pois implica sempre uma mudança radical de regime ontológico e de estatuto social.

O nascimento é um rito de passagem, ao nascer à criança só tem uma existência física, mas necessita dos ritos para ser aceita pela família e pela sociedade.

No catolicismo, esse rito é o batismo, onde a criança recebe um nome.

No rito de passagem do casamento: o recém-casado abandona o grupo de celibatários para participar de outro grupo, o dos chefes de família. Todo casamento implica uma tensão e um perigo, pois desencadeia uma crise, e é por esta razão que o casamento necessita de um rito de passagem.

A morte é um rito de passagem mais complexo, pois ocorre uma mudança ontológica e social. O defunto precisa ser aceito pela comunidade dos mortos. Para certos povos, só o sepultamento ritual confirma a morte, aquele que não é enterrado não está morto.

Numa perspectiva a-religiosa, nascimento, casamento, morte, são apenas acontecimentos que dizem respeito ao indivíduo e sua família, para esse indivíduo essas passagens nada mais significam do que um nascimento, uma morte ou o reconhecimento oficial de uma união sexual.

Porém, mesmo o indivíduo ateu, ao ter um filho, sai distribuindo charutos, as amigas da mãe organizam um “chá de fralda” ou “chá de bebê”. Ao se casar, dá uma festa, convida seus amigos, os quais dizem que ele “entrou para o rol dos homens sérios”.

Hierofanias atuais

Hierofanias: Lugares que o homem a-religioso considera sagrados: a própria casa, o torrão natal, a sepultura de seus mortos. Objetos símbolos de poder e liberdade: o carro, o celular, o computador

Pessoas: a esposa, a mãe, a filha, “meu tipo inesquecível”, o líder, o herói, o mestre. Até as crianças têm (ou tinham) uma brincadeira em que dizem (diziam): “Tudo o que o mestre mandar, será.”

Mais modernamente, muitos indivíduos dizem não ter religião, declaram-se agnósticos, ateus. Porém, carregam seus patuás, seus amuletos, suas pedrinhas da sorte, não passam em baixo de escada, batem três vezes na madeira, etc. etc. etc...

Ritos de passagem atuais

O homem a-religioso acredita que toda a existência humana se constitui por uma série de provas, o jovem tem que conhecer suas possibilidades, tomar consciência de suas forças e tornar-se adulto, o que significa afirmar que toda a existência humana é ela própria, uma iniciação.

O vestibular é um exemplo: o “neófito” precisa ser aceito pela comunidade acadêmica, e para isto passa por outra prova além daquela do vestibular propriamente dito: é o trote, aplicado pelos “veteranos”, que afirmam “eu também já passei por isto”.

Após a formatura, outro ritual de passagem o aguarda: entre os bacharéis em direito, por exemplo, é o “exame da Ordem”, um outro funil, porta estreita, ponte perigosa, que também significa uma rotura e uma transcendência: o indivíduo sai do grupo dos “aprendizes” para entrar no grupo dos “profissionais”.

Outro exemplo de rito de passagem aparentemente a-religioso: a aposentadoria. Essa porta é tão estreita, essa ponte é tão perigosa, que muitas empresas montam verdadeiras estruturas de suporte aos aposentandos, para ajudá-los a se prepararem e a vencerem essa “mutação ontológica”.

Conclusão

Enfim, pode-se concluir que o mundo atual foi dessacralizado, mas conserva fortes comportamentos religiosos. O homem atual continua cultivando seus ritos de passagem, suas hierofanias (manifestações do sagrado em lugares, acontecimentos ou pessoas), seus ritos de cosmogonia (consagração de um lugar); continua julgando que seu lar é seu castelo, está no centro do mundo, é o cosmos que ele próprio organiza, com seus próprios recursos. Mas, embora fazendo tudo isto, ele continua se declarando ateu, agnóstico.

É o caso de nos perguntarmos se a dessacralização do mundo pelo homem é realmente definitiva, ou se ainda haveria alguma possibilidade para o homem não religioso, de reencontrar a dimensão sagrada da existência do mundo.